“Chegamos a um colapso psíquico do qual a guerra na Ucrânia é ao mesmo tempo consequência e sintoma. A guerra psicótica que tem o seu epicentro na Ucrânia está destinada a desencadear consequências apocalípticas a nível econômico, energético, alimentar e até financeiro. E certamente está destinada a agravar a crise psíquica que transtornou o cérebro coletivo”, escreve Franco ‘Bifo’ Berardi, filósofo e ativista italiano, em artigo publicado por Ctxt, 22-06-2022. A tradução é do Cepat.
A primeira edição de Heroes foi lançada em Londres, em 2015. Comecei a escrever este livro em julho de 2012, após ler sobre o massacre ocorrido na cidade de Aurora, Colorado. Um jovem chamado James Holmes, vestido como Batman, com cabelo laranja, foi à estreia de Dark Knight Rises, de Christopher Nolan, e durante a exibição pegou armas automáticas e disparou contra a multidão matando algumas dezenas de pessoas. Trinta e duas, se me lembro bem.
Nos meses anteriores, uma mistura de repugnância e fascínio perverso havia me impelido a ler tudo o que pude encontrar sobre tais massacres que pareciam ter proliferado há alguns anos, principalmente nos Estados Unidos. Quando li sobre James Holmes e o massacre de Aurora decidi escrever sobre esse assunto, pois este episódio me forçou a refletir sobre a relação entre diversão, solidão, competição e, sobretudo, sofrimento.
Dez anos se passaram desde aquele episódio, o pobre James Holmes deve estar trancado em alguma prisão norte-americana, mas a matança nunca parou, ao contrário, avança com cada vez mais intensidade.
Em 2021, houve mais de um tiroteio em massa por dia, segundo a Forbes. Com a expressão tiroteio em massa nos referimos a um evento em que uma pessoa mata ao menos quatro de seus semelhantes e, em seguida, geralmente comete suicídio.
O que me levou a escrever Heroes, em 2012, não foi apenas o absurdo de um país onde qualquer um, mesmo que psiquicamente perturbado, pode comprar armas altamente destrutivas. Sabemos que esse país nasceu de um genocídio, prosperou explorando o trabalho de milhares de escravos deportados com violência e, portanto, sabemos que esse país é por sua própria natureza a negação do humano.
Sabemos que esse país busca a supressão da solidariedade, da compreensão e, em definitivo, da humanidade em todos os lugares. E acima de tudo sabemos que esse país investiu seus recursos econômicos e intelectuais na produção de armas cada vez mais letais, e que sua cultura defende a posse de armas como se fosse a única liberdade da qual não pensam se privar.
O futuro atual do mundo talvez seja melhor entendido, observado, através dessa espécie de loucura horrível, do que através da loucura refinada de economistas e políticos. A agonia do capitalismo e o desmantelamento da civilização social podem ser melhor entendidos a partir deste ponto de vista peculiar: o crime suicidário.
A realidade nua do capitalismo à vista: horrível.
No país líder do mundo livre há mais de uma matança por dia, e a média acelerou após o tremendo extermínio de crianças em Sandy Hook, após o qual Obama prometeu medidas que não pôde adotar. Em 2021, os massacres em que houve mais de quatro vítimas foram 147. Mas o pico foi atingido em 2020, quando ocorreram 610 massacres em doze meses, enquanto a covid-19 ceifava outros inocentes.
Em um artigo publicado em The New York Times, em 27 de maio de 2022 (“A América pode estar quebrada, sem possibilidade de reparação”), Michelle Goldberg nos informa que “a principal causa da morte das crianças estadunidenses são as armas de fogo”. Mas a maioria dos legisladores no Congresso vê isso como um preço que deve ser pago para defender a liberdade.
Liberdade: assim a chamam. Pela liberdade, cometeram o genocídio mais perfeito da história da humanidade. Pela liberdade, deportaram milhões de homens e mulheres de terras africanas. Pela liberdade, exploraram milhões de escravos. Pela liberdade, consomem os recursos do planeta numa proporção quatro vezes superior à média dos restantes países.
Como essa gente arrogante não consegue fazer uma lei que limite a disponibilidade de armas, para que ao menos as crianças possam se salvar? Michelle Goldberg responde: “Será impossível fazer algo sobre a questão das armas, ao menos nacionalmente, enquanto os democratas tiverem que lidar com um partido que vê a insurreição como uma possibilidade política no futuro”.
O ponto é este: nos Estados Unidos, há algum tempo, está em curso uma guerra civil que não tem fronteiras políticas reconhecíveis, que não opõe estes àqueles, os pobres aos ricos, ou os brancos aos negros, mas que opõe todos contra todos.
A guerra civil está em curso, mas não pode ser declarada porque é uma guerra psicótica, desprovida de qualquer outra motivação que não seja o sofrimento psíquico, o desespero e a violência endêmica e congênita.
Michelle Goldberg destaca que “as vítimas dos assassinatos em massa cada vez mais frequentes são danos colaterais em uma guerra civil fria”. Durante sua triunfante campanha eleitoral de 2016, Donald Trump deixou claro: as pessoas da Segunda Emenda poderão deter Hillary Clinton antes que consiga chegar à Casa Branca. As pessoas da segunda emenda, para quem não entendeu, quer dizer: as pessoas fissuradas por sua arma de guerra.
Mas o mais interessante é o que Michelle Goldberg escreve no final de seu artigo: “As vendas de armas tendem a aumentar, após cada assassinato em massa”.
Entretanto, os republicanos relançaram a ideia (uma ideia fantástica, posso dizer, por ter sido professor durante vinte e cinco anos) de armar os professores.
Merece sobreviver uma sociedade na qual os professores e professoras precisam estar prontos para sacar o revólver e matar o intruso na frente dos alunos? Não merece sobreviver, mas a boa notícia é que está se suicidando.
O fato de que após cada tiroteio com grande quantidade de cadáveres espalhados pelo chão aumente a venda de armas permite compreender que para o país líder do mundo livre não há outro futuro a não ser uma guerra civil cada vez mais insana. Uma retroalimentação positiva que se soma a muitos outros processos de autoalimentação de tendências destrutivas. A irreversibilidade das tendências autodestrutivas (a nível ambiental, social, militar) é a garantia de um final horrível para toda a humanidade.
Nos anos posteriores à publicação de Heroes, alguns jornalistas me ligaram para perguntar o que eu pensava de novos episódios desse tipo, mas lhes respondi que não queria mais me tornar um especialista em terror demente, e não me mantive inteirado acerca desses eventos sombrios.
No entanto, durante esta primavera de 2022, esse livro voltou à minha mente porque o heroísmo dos psicopatas que na última década encheram de sangue cinemas, escolas primárias, shows em massa e supermercados, hoje, parece se estender muito além dos limites das notícias policiais. Para invadir a esfera geopolítica, para se apoderar do destino do mundo.
Heroes falava do insano retorno do heroísmo suicida no inconsciente de indivíduos isolados, embora não tão poucos. Agora, o heroísmo suicida ocupa o centro da paisagem midiática global e se estende pela linguagem dos grandes líderes políticos.
O heroísmo do assassino em série se destaca agora em um novo contexto: o da guerra, o do assassinato sistemático e legalizado, o do extermínio prometido e realizado.
A guerra que eclodiu em 24 de fevereiro de 2022, nas fronteiras orientais da Europa, marca o início da fase final da agonia da civilização branca, a que se definiu como “moderna”. A agonia começou nos anos em que o poeta irlandês W.B. Yeats escreveu que “os melhores carecem de toda convicção, os piores estão cheios de intensidade apaixonada” (“The best lack all conviction, the worst are full of passionate intensity”, The second coming). O paralelo poderia ser interpretado assim: “Os melhores estão deprimidos, os piores estão eufóricos, e apaixonadamente enviam armas ao que querem matar ou querem que os matem”.
Diante da evidência de sua decadência, no esgotamento das energias que possibilitaram cinco séculos de expansão econômica, territorial, demográfica e técnica, a raça branca (ou melhor, a cultura cristã, expansionista e patriarcal) está em um delírio de onipotência que esconde uma pulsão suicida.
A cultura branca não pode pensar no esgotamento, o inconsciente branco não pode aceitar o esgotamento dos recursos naturais que a aceleração extrativista consumiu de forma frenética. A expansão econômica só é possível hoje, caso devaste ainda mais o ambiente planetário que está se tornando inabitável para os humanos. A expansão territorial colonial, tendo atingido os limites extremos do planeta, foi substituída pela aceleração do tempo infoprodutivo, mas essa aceleração provocou o esgotamento do sistema nervoso da humanidade.
Assim chegamos a um colapso psíquico do qual a guerra na Ucrânia é ao mesmo tempo consequência e sintoma. A guerra psicótica que tem o seu epicentro na Ucrânia está destinada a desencadear consequências apocalípticas a nível econômico, energético, alimentar e até financeiro. E certamente está destinada a agravar a crise psíquica que transtornou o cérebro coletivo.
É fácil prever que os efeitos econômicos se espalharão rapidamente por todo o planeta, levando dezenas de milhões de africanos à fome e devastando o sistema produtivo europeu, ao mesmo tempo em que não podemos prever se a guerra local travada com armas convencionais evoluirá para uma guerra generalizada, com o uso de armas nucleares. Por enquanto, limitamo-nos a presenciar o horror que as televisões privadas e públicas mostram sem parar, ao longo do dia, todos os dias, para que o espírito público se entusiasme e se encha de heroísmo.
O heroísmo está na moda no discurso público dos meios de comunicação e dos políticos europeus. A população é chamada a apoiar os combatentes, que são encorajados a resistir, a matar e a morrer.
A União Europeia nasceu com a intenção de superar a retórica do nacionalismo e renunciar para sempre à guerra, mas agora a Europa se ergue como uma nação em armas, na euforia dos velhos trotskistas convertidos ao intervencionismo. Retorna o Sturm und Drang que levou a Europa a desencadear duas guerras mundiais no século passado. Mais armas, mais armas, grita-se de um extremo ao outro do continente.
Mesmo no continente norte-americano há pressa em se armar, como se não bastassem 400 milhões de armas de fogo, repartidas em uma população de 330 milhões.
Quando escrevi Heroes, eu sabia que isto não era uma moda passageira, que a devastação psíquica produzida pela sociedade hipercompetitiva continuaria alimentando o frenesi psicótico-assassino. Mas eu não sabia, então, que essa guerra civil psicótica convergiria com uma guerra fora de moda do século XX.
Então, aqui estamos, vendo na mesma tela de televisão Biden prometendo enviar cada vez mais armas letais para seus clientes ucranianos, e Biden chorando lágrimas de crocodilo pela violência em Uvalde, onde um jovem de dezoito anos, chamado Salvador Ramos, trancou-se em uma sala da escola primária e atirou em crianças e professores, matando vinte e duas vítimas inocentes, assim como acontece com os civis que morrem sob as bombas russas em Mariupol e Severodonetsk.
Quem era Salvador Ramos? Salvador era um adolescente nascido em uma das muitas famílias que fugiram dos países da América Central. A mãe é viciada em drogas, como milhões de pessoas naquele país, onde há anos opiáceos são distribuídos a preços baixos, como cura para a infelicidade.
Em razão do povo dos Estados Unidos ser o povo mais infeliz do mundo, a demanda por substâncias para aliviar a dor é enorme, e dado que os Estados Unidos são um país onde as grandes corporações têm todo o poder e os pobres não têm direitos, é normal que se propague o vício em drogas, promovido pelas grandes empresas farmacêuticas.
A avó de Salvador Ramos cuidou de seu neto e o que sabemos sobre a vida do jovem é suficiente para explicar por que ele queria se vingar. Família migrante, muito pobre. Seus colegas o haviam isolado e desprezado, dizem os jornais, porque era pobre, porque gaguejava um pouco, porque vestia emo e porque, em certo momento, começou a usar um lápis para destacar a linha de seus olhos. Tinha um rosto muito bonito, em uma foto aparece com os cabelos compridos e um olhar triste, mas doce, feminino.
Salvador Ramos abandonou a escola que para ele deve ter sido um lugar de tormento e humilhação. Retornou depois à escola, com dois fuzis automáticos, e fez justiça matando vinte crianças.
Alguns psicólogos disseram que Salvador talvez desejasse matar sua própria infância, que deve ter sido marcada pela dor da separação de sua mãe, a aflição pela crueldade do mundo adulto e a maldade de seus colegas. Com isso é dito que conclusão à qual Salvador chegou é totalmente coerente, compreensível: libertou vinte de seus semelhantes de uma vida que certamente estava destinada a ser dolorosa, repugnante, humilhante, como a sua. E se libertou dessa vida que não tinha nenhuma possibilidade de ser diferente daquela que tinha sido a sua infância.
Li que um dia Salvador disse que queria se unir aos fuzileiros navais para poder matar. Apesar de suas origens e da marginalização a qual os Estados Unidos o destinaram, Salvador havia se tornado um verdadeiro estadunidense, um aspirante a assassino que sabe que pode expressar plenamente suas habilidades e sua vocação indo para algum país distante onde, como no Afeganistão e como no Iraque, homens, mulheres e crianças podem ser assassinados impunemente.
Enquanto esperava matar pela defesa de sua pátria, por acaso Salvador havia decidido treinar comprando e usando dois fuzis AR15 e mais de trezentas balas? Não, não se tratava de treinar para a guerra. A guerra está em todas as partes, onde quer que haja inimigos para eliminar. Todo ser humano é um alvo. Primeiro, disparou no rosto de sua avó, mas ela sobreviveu, pobre avó. Aqui, a avó é, entre todos, a personagem com quem mais me identifico.
Uma semana antes do massacre da escola de Uvalde, outro jovem de 18 anos, Payton S. Gendron, entrou em um supermercado na cidade de Buffalo e atirou em pessoas que estavam fazendo compras, matando uma dezena de afro-americanos e mais alguns desafortunados. O jovem Gendron havia declarado suas intenções em um manifesto supremacista publicado online: opor-se com armas à Grande Substituição, à invasão de negros e outros não-brancos. A obsessão racista cresceu no inconsciente branco, incapaz de lidar com o esgotamento de seu poder.
O declínio demográfico, social e intelectual da raça branca alimenta uma onda de violência que assume diferentes formas, do massacre de Buffalo à decisão dos governos europeus de afogar os africanos que tentam atravessar o Mar Mediterrâneo, enquanto acolhem milhões de refugiados ucranianos que fogem de uma guerra armada pelos ocidentais. Deste ponto de vista, o jovem Gendron tem todo o direito de proclamar, como fez durante a primeira audiência (porque não se suicidou, ao contrário da maioria dos atiradores em massa), que é um verdadeiro estadunidense.
Em 29 de maio, em Uvalde, na cidade do Texas onde aconteceu o massacre da escola primária, Joe Biden se queixou: “Muita violência, muito medo, muita dor”.
Os democratas tentam, sem sucesso, regulamentar em lei o comércio de armas (mesmo que seja tarde demais, porque os porões da América já estão cheios delas), e nos mesmos dias enviam toneladas de material bélico aos jovens ucranianos para que o mesmo incêndio irrompa em todos os lugares: o suicídio mortal da raça branca.
Dois dias após o massacre no Texas, a convenção de amantes dos rifles, chamada NRA, foi realizada perto de Austin. “A única forma de parar uma pessoa má com uma arma, é uma pessoa boa com uma arma”, dizem os partidários da Associação Nacional de Rifles, entre os quais se destacam por sua humanidade e inteligência Donald Trump e Ted Cruz.
Contudo, a experiência demonstra que essa ideia não funciona. Minutos depois que o mau Salvador Ramos entrou na escola de Uvalde, chegaram ao local cerca de quinze policiais completamente armados: bons que não fizeram nada. E que poderiam fazer? Atirar pelas paredes com o objetivo de matar mais algumas crianças?
O proprietário da Central Texas Gun Works de Austin, Michael Cargill, de 53 anos, disse que seria errado regulamentar o comércio de armas militares. “Só um louco pode entrar em uma escola primária e matar crianças. Alterar as leis não mudaria nada. A loucura não pode ser regulamentada”.
Concordo com o sr. Michael Cargill, de Austin: não há lei que possa governar o pânico, a depressão, o vício em publicidade e as substâncias psicotrópicas que alteram agressivamente o comportamento. Não há lei que possa salvar os Estados Unidos. Nisso Michelle Goldberg tem razão: os Estados Unidos estão irreparavelmente quebrados porque a violência, o crime, a guerra não são o efeito da vontade política, de uma vontade política razoável, mesmo que criminosa. Não. São sobretudo o efeito de um estado mental de desespero absoluto e, portanto, os efeitos de uma determinação em se suicidar que se torna agressiva.
Não há lei que possa salvar os Estados Unidos, não há política que possa salvar um país devastado pela psicose, a demência senil e a agressão assassina de seus jovens, furiosos e deprimidos pelo lugar para onde foram chamados a viver (sem terem pedido, sem terem manifestado a sua disponibilidade), um lugar infernal, irrespirável, agressivo, um lugar sem ternura, sem afeto, sem esperança, sem inteligência.
Não há lei que possa deter o horror.
O discurso que Zelenski fez perante a Assembleia da União Europeia, em 1º de março, depois de responder àqueles que lhe ofereceram uma saída à guerra que pedia armas e não um elevador, é o começo do retorno dos heróis para a arena europeia.
Olho as fotos dos milicianos do Batalhão de Azov entrincheirados na siderúrgica, com faixas ensanguentadas, capacetes e tatuagens nos bíceps. Heróis homéricos. Ájax, o solitário paranoico. Aquiles, o vaidoso raivoso.
Alguma vez, você se perguntou quem era Aquiles? Um jovem atlético que foi matar Heitor e muitos outros troianos inocentes porque a mulher de um amigo havia fugido com o galante Páris. Esse Aquiles não é um idiota? Em geral, os heróis não são idiotas? Não estamos presos na armadilha da idiotice?
Há cinquenta anos, dissemos: “Socialismo ou barbárie”, mas durante muito tempo nos perguntamos como seria a barbárie iminente. Agora, sabemos.
No The New York Times, foi publicado um artigo de Peter Coy que filosofa com uma salada de frases contraditórias, mas repleta de retórica arrogante: “A coragem parecia estar morta, então veio Zelenski”. O objeto das reflexões fascistas de Peter Coy é a coragem, de fato, o heroísmo.
Há alguns séculos, pensamos em construir algo chamado civilização, na qual não é preciso ser forte e agressivo para conseguir o pão, mas em que todos, até os menores e temerosos, possam ter acesso à educação e a saúde. Mas não importa. Peter Coy explica com orgulho que finalmente voltamos ao heroico clube dos antepassados, com a pequena diferença de que agora o clube tem um dispositivo nuclear que pode incinerar Londres, por assim dizer.
Ganhar significa impor a força de uma vontade contra e acima de outra vontade. De Maquiavel em diante, essa ideia da vontade que se impõe pela força tem contado com certa fortuna e produzido grandes progressos e não menos grandes catástrofes. Mas essa história acabou: o poder da vontade, projeto e governo é aniquilado pela complexidade da natureza que se rebela, o autômato tecnomilitar que governa a si mesmo e o inconsciente coletivo que oscila entre o colapso depressivo e a psicose agressiva.
Ganhar é impor o próprio projeto, anulando os projetos que se opõem ao nosso. Nesse sentido, ninguém pode ganhar mais nada, se é que ganhar alguma vez significou algo.
Mas, aqui, surge a pergunta mais dramática para a qual não temos uma resposta no momento: existe uma força cultural e política na sociedade que seja capaz de parar a psicose e desativar sua violência destrutiva? Essa força não será o movimento pacifista, ao qual também adiro sem muitas esperanças [?]. O pacifismo é uma declaração, uma pergunta, um chamado, mas não tem poder. Por outro lado, precisamos do poder, mesmo que seja o poder negativo de se retirar.
A força capaz de escapar da psicose de massas é a deserção de todas as ordens automáticas: da ordem automática da guerra, em primeiro lugar. Mas também da ordem automática da concorrência, do trabalho assalariado e do consumismo. E também da ordem automática do crescimento econômico que destrói o meio ambiente e o cérebro para gerar lucros.
Essa força existe: é a força do desespero, atualmente na maioria. Mas o desespero (a falta de esperança no futuro) pode evoluir como depressão epidêmica, pode evoluir como psicose agressiva, ou pode evoluir como deserção, abandono de todos os campos de batalha, sobrevivência à margem de uma sociedade que se desintegra, autossuficiência em exílio do mundo.